terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Estrela da tarde














Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!

Poema de Ary dos Santos

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009








Sorri quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos vazios

Sorri quando tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador

Sorri quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados doridos

Sorri vai mentindo a sua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz

Poema de Charles Chaplin

Minha vida ...







Minha vida não foi um romance...
Nunca tive até hoje um segredo.
Se me amar, não digas, que morro
De surpresa... de encanto... de medo...

Minha vida não foi um romance
Minha vida passou por passar
Se não amas, não finjas, que vivo
Esperando um amor para amar.

Minha vida não foi um romance...
Pobre vida... passou sem enredo...
Glória a ti que me enches de vida
De surpresa, de encanto, de medo!

Minha vida não foi um romance...
Ai de mim... Já se ia acabar!
Pobre vida que toda depende
De um sorriso.. de um gesto.. um olhar...

Poema de Mário Quintana

sábado, 26 de dezembro de 2009

Acordar, Viver










Como acordar sem sofrimento?

Recomeçar sem horror?

O sono transportou-me

àquele reino onde não existe vida e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte, a fábula inconclusa,

suportar a semelhança das coisas ásperas

de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas

que rasga em mim o acontecimento,

qualquer acontecimento que lembra a Terra e sua púrpura demente?

E mais aquela ferida que me inflijo a cada hora,

algoz do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

Poema de Carlos Drummond de Andrade

Natal






O sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

Poema de Fernando Pessoa

Recomeça….





Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…

Miguel Torga

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A NOITE DE NATAL





Em a noite de Natal
Alegram-se os pequenitos;
Pois sabem que o bom Jesus
Costuma dar-lhes bonitos.

Vão se deitar os lindinhos
Mas nem dormem de contentes
E somente às dez horas
Adormecem inocentes.

Perguntam logo à criada
Quando acorde de manhã
Se Jesus lhes não deu nada.

– Deu-lhes sim, muitos bonitos.
– Queremo-nos já levantar
Respondem os pequenitos.

Mário de Sá-Carneiro

O meu mais belo poema de Natal







Mulheres atarefadas
Tratam do bacalhau,
Do peru, das rabanadas.

- Não esqueças o colorau,
O azeite e o bolo-rei!

- Está bem, eu sei!

- E as garrafas de vinho?

- Já vão a caminho!

- Oh mãe, estou pr'a ver
Que prendas vou ter.
Que prendas terei?

- Não sei, não sei...

Num qualquer lado,
Esquecido, abandonado,
O Deus-Menino
Murmura baixinho:

- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?

Senta-se a família
À volta da mesa.

Não há sinal da cruz,

Nem oração ou reza.

Tilintam copos e talheres.
Crianças, homens e mulheres
Em eufórico ambiente.
Lá fora tão frio,
Cá dentro tão quente!

Algures esquecido,
Ouve-se Jesus dorido:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?

Rasgam-se embrulhos,
Admiram-se as prendas,
Aumentam os barulhos
Com mais oferendas.
Amontoam-se sacos e papeis
Sem regras nem leis.
E Cristo Menino
A fazer beicinho:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?

O sono está a chegar.
Tantos restos por mesa e chão!
Cada um vai transportar
Bem-estar no coração.
A noite vai terminar
E o Menino, quase a chorar:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?
Foi a festa do Meu Natal
E, do princípio ao fim,
Quem se lembrou de Mim?
Não tive tecto nem afecto!

Em tudo, tudo, eu medito
E pergunto no fechar da luz:

- Porventura foi este o Natal de Jesus?!!!

(João Coelho dos Santos
in Lágrima do Mar - 1996)
O meu mais belo poema de Natal

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Entre Sombras



Vem às vezes sentar-se ao pé de mim
— A noite desce, desfolhando as rosas —
Vem ter comigo, às horas duvidosas,
Uma visão, com asas de setim...

Pousa de leve a delicada mão
— Rescende amena a noite sossegada —
Pousa a mão compassiva e perfumada
Sobre o meu dolorido coração...


E diz-me essa visão compadecida
— Ha suspiros no espaço vaporoso —
Diz-me: Porque é que choras silencioso?
Porque é tão erma e triste a tua vida?

Vem comigo! Embalado nos meus braços
— Na noite funda ha um silencio santo —
N'um sonho feito só de luz e encanto
Transporás a dormir esses espaços...

Porque eu habito a região distante
— A noite exhala uma doçura infinda —
Onde ainda se crê e se ama ainda,
Onde uma aurora igual brilha constante...

Habito ali, e tu virás comigo
— Palpita a noite n'um clarão que ofusca —
Porque eu venho de longe, em tua busca,
Trazer-te paz e alivio, pobre amigo...

Assim me fala essa visão nocturna
— No vago espaço ha vozes dolorosas —
São as suas palavras carinhosas
Agua correndo em cristalina urna...

Mas eu escuto-a imovel, sonolento
— A noite verte um desconsolo immenso —
Sinto nos membros como um chumbo denso,
E mudo e tenebroso o pensamento...

Fito-a, n'um pasmo doloroso absorto
— A noite é erma como campa enorme —
Fito-a com olhos turvos de quem dorme
E respondo: Bem sabes que estou morto!

Autor: Antero de Quental, in 'Sonetos'

Na Mão de Deus







Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depois do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!

Autor: Antero de Quental, in "Sonetos"

Último Soneto

















Que rosas fugitivas foste ali!
Requeriam-te os tapetes, e vieste...
--- Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste!
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...

Pensei que fosse o meu o teu cansaço
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...

E fugiste... Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?...

Autor: Mário de Sá-Carneiro