quinta-feira, 16 de julho de 2009

Entre o sono e sonho


    Entre o sono e sonho,
    Entre mim e o que em mim
    É o quem eu me suponho
    Corre um rio sem fim.

    Passou por outras margens,
    Diversas mais além,
    Naquelas várias viagens
    Que todo o rio tem.

    Chegou onde hoje habito
    A casa que hoje sou.
    Passa, se eu me medito;
    Se desperto, passou.

    E quem me sinto e morre
    No que me liga a mim
    Dorme onde o rio corre -
    Esse rio sem fim.

    Fernando Pessoa, 11-9-1933

Ausente...



    Teus olhos entristecem.
    Nem ouves o que digo.
    Dormem, sonham esquecem...
    Não me ouves, e prossigo.

    Digo o que já, de triste,
    Te disse tanta vez...
    Creio que nunca o ouviste
    De tão tua que és.

    Olhas-me de repente
    De um distante impreciso
    Com um olhar ausente.
    Começas um sorriso.

    Continuo a falar.
    Continuas ouvindo
    O que estás a pensar,
    Já quase não sorrindo.

    Até que neste ocioso
    Sumir da tarde fútil,
    Se esfolha silencioso
    O teu sorriso inútil.

    Fernando Pessoa, 19-10-1935

Sonho


    Sonho. Não sei quem sou neste momento.
    Durmo sentindo-me. Na hora calma
    Meu pensamento esquece o pensamento,

    Minha alma não tem alma.

    Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
    Parece que erro. Sinto que não sei.
    Nada quero nem tenho nem recordo.

    Não tenho ser nem lei.

    Lapso da consciência entre ilusões,
    Fantasmas me limitam e me contêm.
    Dorme insciente de alheios corações,

    Coração de ninguém.

    Fernando Pessoa, 6-1-1923

ABDICAÇÃO


    Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
    E chama-me teu filho... eu sou um rei
    que voluntariamente abandonei
    O meu trono de sonhos e cansaços.

    Minha espada, pesada a braços lassos,
    Em mão viris e calmas entreguei;
    E meu cetro e coroa - eu os deixei
    Na antecâmara, feitos em pedaços

    Minha cota de malha, tão inútil,
    Minhas esporas de um tinir tão fútil,
    Deixei-as pela fria escadaria.

    Despi a realeza, corpo e alma,
    E regressei à noite antiga e calma
    Como a paisagem ao morrer do dia.

    Fernando Pessoa, 1913

Imagens de Portugal

viagens